sábado, 4 de junho de 2011

- Transcrição

Não posso perder minhas mãos e nem o movimento dos dedos, preciso deles para escrever, necessito deles pra sentir...

Estava a 2:00 hr esperando para ser atendida, havia várias pessoas feridas na minha frente e apenas um médico para atender tantas pessoas. Eram ao todo 36 acidentados esperando, os casos mais complexos foram passados na frente.
O ônibus em que eu viajava cortava a noite com seu farol, em uma das das curvas a tal fatalidade aconteceu, o motorista não resistiu a batida do caminhão de toras de madeira que vinha em nossa direção, o impacto foi tão grande que ele nem deve ter sentido a morte.
Lembro-me que estava lendo algumas anotações quando tudo aconteceu, fomos lançados para fora da estrada, capotamos algumas vezes. Os gritos soavam forte, pensei que naquele momento a morte me encontraria e me levaria ao seu recinto, mas não, ela trocou o enfoque e levou à moça que estava sentada ao meu lado, lembro-me do sangue escorrendo por sua orelha direita, a cadeira prensada em sua cintura e dos olhos esverdeados arregalados que me dão angústia de imaginar até hoje.
Os primeiros passageiros do ônibus também não resistiram ao impacto que foi realmente destruidor. Eu me agarrei à minha bolsa e esperei o pior como sempre, estava sem cinto de segurança, o que me fez ser jogada juntamente com bagagens e outros passageiros de um lado para o outro. De todos os meus medos, creio que esse foi o pior.
Depois de algumas "cambalhotas" analisamos o estrago, dos 50 passageiros, 14 estavam mortos, parecia que estávamos vivendo num filme de terror.
Não sei totalmente o que houve após a tragédia, minha perna esquerda estava quebrada, minha costela doia, havia sangue em quase todo meu corpo e não sentia as minhas mãos, apaguei. Lembro-me de um rapaz, também passageiro com um corte um tanto quanto profundo na fronte, que me retirou do ônibus. Eu não conseguia me mexer, parecia que o corpo todo estava fora do lugar.
Fomos levados aos poucos, revezando uma equipe bem pequena de enfermeiros que nos levaram a cidadezinha de Sengés, mas como a saúde pública é realmente um problema, ainda mais em dia festivo de feriado havia apenas um médico e seis enfermeiros no pronto socorro para cuidar de 36 pessoas com os mais diversos tipos de ferimentos, a pretensão era de não deixar ninguém morrer. Passaram os idosos e crianças primeiro, em seguida, os casos de cortes mais graves e por último ficaram as lesões superficiais não tão profundas, como era o meu caso.
A sala de recepção estava lotada e em péssimas condições, aliás, o hospital inteiro estava despreparado para aquela situação de emergência. Faltavam macas, atendimento, equipamento, faltava tudo. Queria sair dali, mas não era possível, não tinha sequer uma unidade para me levar a outra cidade. Não estava preocupada com a minha perna, ou com os hematomas em minha pele, preocupava-me apenas com as minhas mãos, eu não as sentia.
Ouvi um enfermeiro comentar: - Aquela moça está preocupada apenas com as mãos, mãos não servem pra muita coisa, o pior é o estado em que o corpo dela se encontra. Queria cortar aquelas palavras, mas não tive forças. Sem as mãos não poderia escrever, não faria aquilo que mais gosto...
Eram 3:00 hr da madrugada quando adentrei na sala suja, onde o Dr. Dropa trocava suas luvas manchadas de sangue por outras novas. Supliquei para que ele esquecesse os ferimentos do corpo, para que salvasse as minhas mãos. Ele pegou-as fez testes e as palavras ríspidas soaram feito trovão em meu ouvido: - Elas não voltarão, disse-me que poderia fazer fisioterapia, que elas estavam dormentes e que possivelmente esse quadro não revertesse. Lágrimas escorreram. Não ligaria se fosse qualquer outra parte do corpo, queria apenas manter os movimentos flexíveis dos meus dedos. A noite foi longa naquele 21 de Abril, algumas mortes, inúmeros feridos, preces e agradecimentos à Deus pela continuidade da vida. Eu também agradeci, porém, com um pouco de desdém, queria os movimentos mais preciosos que perdi.
Recuperei-me aos poucos das outras lesões, fiz muitas sessões de fisioterapia que não tiveram resultado.
Retomo hoje as palavras que gostaria de ter dito ao enfermeiro daquela noite, agora palavras modificadas: - Você realmente estava certo, mãos podem não servir pra muitas coisas, é possível sobreviver sem elas. Porém, elas foram úteis para mim enquanto eu ainda podia movimentá-las. Espero que um dia não as perca, pois exercer sua profissão sem elas não seria possível, assim como de início, pensei que exercer minha profissão de escritora também não fosse.
Este é o primeiro texto que "escrevo" com outras mãos, com as mãos de minha irmã, aquela que tanto me incentivou a continuar imaginando histórias. Histórias que elas transcreve para o papel.
Não me sinto tão inútil como pensei que sentiria, afinal, como dizem os mais velhos: "Há males que vem para bem", o acidente auxiliou na aproximação com minha família, posso dizer: - Afinal, o que são as mãos diante de uma vida!?

2 comentários:

  1. Que lindo o texto, amei.

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  2. Gabi e mãe aqui, adoramos o seu texto, como a mae disse : A PRI É UMA ESCRITORA ESCONDIDA ATRAS DE UMA ADOLESCENTE HISTORIADORA. bjs.

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